quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Raul Seixas - 20 anos de metamorfose

Por Mário Lucena

Raul nasceu para a música. Preparou-se para a vida cantando. Cresceu ouvindo Elvis Presley e outros grandes nomes do rock. Imitando seus ídolos fez sucesso em Salvador.

Comunicava-se por meio da música. Tornou-se compositor. Criou o que chamou de ie-ie-ie realista. Fez sucesso na voz de Jerry Adriani e interpretes da Jovem Guarda. Mudou-se em 1968 para o Rio de Janeiro e gravou seu primeiro disco. Foi um fracasso. Passou fome e desistiu da empreitada.

Quando voltou ao disco, em 1971, não ofereceu nada pronto ao ouvinte. Sua música questionava a vida e a morte, a existência, o mundo, o certo e o errado. Raul se questionava. Aos 21 anos havia dado a volta por cima e conseguido tudo o que um homem comum poderia desejar: carro, apartamento, mulher, filha e emprego de executivo numa multinacional.

Morava no Rio de Janeiro, uma das cidades mais belas do mundo. Reconhecia tudo isso, mas "não era o que queria" (Êta Vida). Estava infeliz, pois seu querer era a música. A metamorfose física ocorreu em 1972. Largou o cargo de executivo da gravadora CBS, deixou de lado o paletó e a gravata, deixou crescer cabelo e barba e voltou a imitar Elvis Presley num festival de música promovido pela Globo. Apresentou-se ao Brasil como cantor de rock, mas era muito mais.

Outra metamorfose, ocorrida com a leitura de filósofos reducionistas como Schopenhauer, havia transformado Raulzito em Raul Seixas. O que o imortalizou foi sua autenticidade. Em 1968 citou Schopenhauer na composição Trem 103: Consciente de voltar por onde vim. O trem, a composição, veículo da morte-renascimento, torna-se presença constante na sua obra. Aparece com destaque em 1973 (A hora do trem passar) e em 1974 (Trem das sete). Em 1989, ano de sua morte, Raul expressou o desejo de mudar a direção do trem (Carpinteiro do universo). O voltar por onde vim, de Schopenhauer, será repetido de todas as formas possíveis (Tudo acaba onde começou; Meu princípio já chegou ao fim; O caminho da vida é a morte; A gente nasce no fim; É mais um que nasce e começa a morrer; Já não sei se é hora de partir ou de chegar; No momento em que eu ia partir, eu resolvi ficar). Nenhum parceiro, por mais criativo ou influente, o desviou dos trilhos. Seguiu com coerência os passos da filosofia. Em alguns momentos citou Protágoras, Sócrates, Platão, Sartre, mas suas principais fontes foram o hermético Crowley e o pessimista Schopenhauer.

Ambos traziam o hinduísmo na veia, herdado por Raul. Foi na pele de Krishna que cantou seu maior sucesso, Gita. De Crowley, Raul abstraiu a proposta mística-liberal. Levou-a ao público a partir de 1974 como Sociedade Alternativa. Mesmo sem a benção da censura, recitava os versos da Lei de Thelema ou Lei da Vontade (de Crowley e Schopenhauer) em meio ao refrão da Sociedade. A Lei só seria liberada em 1988 e, por sua causa, Raul se viu em apuros: preso, torturado e exilado pela ditadura. Mosca na sopa é Schopenhauer (Se a mosca, que agora zumbe em torno de mim, morre à noite, e na primavera zumbe outra mosca nascida do seu ovo; isso é em si a mesma coisa), mas para não deixar dúvida sobre sua fonte mais rica, em 1983, pegou do filósofo um trecho do capítulo Morte, do livro Dores do Mundo, para usar em Nuit: Quão longa é a noite do tempo sem limites, comparada ao curto sonho da vida. Raul era genial no que fazia e conquistou uma legião de fãs exatamente por não ser egoísta, por compartilhar seu conhecimento sem medo.

Como um herói mitológico foi ao inferno e voltou várias vezes. Encarnou o niilismo, foi Sísifo subindo e descendo a ladeira da fama. A angústia de morte era seu tormento. Sofreu a espera da dama de cetim. Sua morte teria sido triste se não tivesse retornado aos palcos e ao disco, em 1989, na companhia de Marcelo Nova, para testemunhar sua imortalidade.

Vinte anos após sua morte, Raul resolveu se revelar! Ivan Cardoso faz exposição com fotos inéditas; o produtor Mazola lança kit-DVD no qual o artista canta gospel; Edmundo Leite, do Estadão, escreve uma biografia completa; Walter Carvalho e Evaldo Moca finalizam o documentário O início, o fim e o meio; A Globo prepara o especial Por toda minha vida; a revista Caros Amigos promete Edição Especial e a Rolling Stones uma grande matéria; Centenas de espaços culturais promovem atividades durante o mês de agosto para lembrar o cometa baiano. Raul está mais vivo do que nunca!

Metamorfose Ambulante (Vida, alguma coisa acontece; Morte, alguma coisa pode acontecer). Este é o título do livro de minha autoria e mais dois colegas psicólogos, sob a coordenação de Sylvio Passos. Um livro de revelações bombásticas. A relação de Raul com a filosofia (Schopenhauer, Crowley, Sartre etc), parceiros (Paulo, Cláudio, Motta etc), imprensa (disco voador, drogas, Jerry Lee, John Lennon etc), família e até com o capeta!

Mário Lucena é editor, jornalista, bacharel em psicologia e conviveu com Raul Seixas entre 1981 e 1982.


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