domingo, 14 de fevereiro de 2010

O Desaparecimento do pai


Entrevista com o psicanalista milanês, Luigi Zoja.

Para o psicanalista milanês, Luigi Zoja, o colapso da figura paterna está por trás do que ele considera a situação de declínio sem precedentes na civilização ocidental.

Luis S. Krauz – Gazeta Mercantil de São Paulo

Observador da sociedade contemporânea, que recorre aos instrumentos da psicologia junguiana para decifrar fenômenos sociais de larga escala, Zola, hoje presidente da Sociedade Internacional de Psicologia Analítica, sediada em Nova York, vem há anos estudando os problemas crescentes que afligem a psique coletiva de países da Europa e Américas.

No ano passado (2000) foi publicado no Brasil seu estudo “História da Arrogância” (editora Axis Mundi), que analisa as origens da fantasia de crescimento ilimitado que dominam a modernidade. Seu novo livro chama-se: “Il Gesto de Ettore – Presitoria, Storia, Attualità e Scomparsa Del Padre” (“O gesto de Heitor – pré-história, atualidade e desaparecimento do Pai), foi publicado pela editora Routledge & Brunnet. Neste estudo Zoja volta seu olhar para o gradativo desaparecimento de uma autoridade paterna e patriarcal no mundo contemporâneo. Ele identifica o fenômeno como à raiz de uma série de problemas – que vão do crescimento da delinqüência juvenil e do consumo de drogas até distúrbios psíquicos, desorientação, florescimento de ditaduras e, acima de tudo, a ausência de projetos plausíveis a médio e longo prazo, tanto na esfera dos indivíduos quanto na das coletividades e nações.

O desaparecimento a que Zoja se refere neste seu novo trabalho tem diferentes aspectos. De um lado está a ausência do pai em um número cada vez maior de famílias. De outro lado está o que Zoja considera a ausência de uma autoridade paterna na psique coletiva das sociedades contemporâneas, ou seja, a ausência de hierarquias espirituais, de valores abstratos, de uma ligação estreita com o passado e de um olhar que se dirige para o futuro. “Nossa época está distante do respeito aos símbolos, aos ritos como valores em si (...). Tornamo-nos mais ricos de objetos e mais pobres de psicologia, não compreendemos que um mistério pode ter mais sentido e intensidade do que a sua solução”, diz o autor em seu novo livros. O título vem da figura mítica de Heitor, o herói troiano que é morto por Aquiles na “Ilíada”, mas que antes é retratado com grande sensibilidade por Homero numa rara cena familiar, ao lado da mulher, Andrômeda, e seu filho, Astianax.

Lei a seguir, a entrevista que Luigi Zoja concedeu em recente visita a São Paulo, quando apresentou a conferência na PUC e na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica:

Fenômeno Universal

Gazeta Marcatil: O senhor considera o desaparecimento do pai como um fenômeno universal ou há diferença entre os diferentes países na atualidade?

Luigi Zoja – O que sei é que entre os Estados Unidos e a maior parte do América do Sul o fenômeno da ausência material do pai é algo mais recente. Até a década de 70, tratava-se de um fenômeno confinado à população de negros, e só com a explosão de divórcios alastrou-se pelas classes médias e altas. Nos países de colonização ibérica, ao contrário, há uma tradição secular, que remonta ao início das conquistas, pois os imigrantes da Europa eram, em sua maior parte, homens. Eles em sua maior parte não se casavam realmente, simplesmente tinham filhos com mulheres índias ou escravas e depois os ignoravam, de forma que a ausência do pai, ausências de uma relação com o pai é algo arraigado em uma larga camada da população na América Latina. Como os protestantes ingleses emigraram com suas famílias para o que hoje são os Estados Unidos, a família era algo intrínseco à sociedade norte-americana – ao menos entre os brancos. Os escravos negros viviam separadamente e entre estes a inexistência de um pai é um fenômeno mais antigo. Na América Latina tudo era misturado, talvez por causa da tradição católica de que a pessoa pode se misturar com o pecado e depois se purificar.

GM – O senhor vê relação entre a tradição de ausência do pai na América Latina e o estado de subdesenvolvimento político e econômico nesta parte do mundo?

LZ – Acredito que haja uma relação, mas não quero ser superficial. Eu sou psicanalista e não economista ou sociólogo. Mas hoje visitei uma organização de voluntários que trabalha com crianças pobres em uma favela e perguntei às mulheres que encontrei lá sobre a ausência de pais. Oficialmente, as crianças têm pais, mas na maior parte dos casos os pais estão desempregados, ou presos, ou são alcoólatras. Não há uma ausência material do pai, mas na prática há uma ausência do princípio paterno, de autoridade, de maneira que creio que a ausência do pai cresce na medida em que desce a escala social. Nos Estados Unidos acontece algo parecido. Recentemente visitava o Museu da Criança no Brooklyn – um museu que é visitado por crianças, evidentemente acompanhadas de seus pais. Minha mulher, que é muito observadora, disse: “Veja, em vez de estudar a situação do pai na sociedade americana em tantas bibliotecas, você poderia ter vindo aqui. Veja as famílias e você verá como vai ser a estratificação social na próxima geração nos Estados Unidos”. E imediatamente podia-se ver os diferentes graus de presença paterna nos diversos grupos sociais. No Brooklyn há os judeus ortodoxos e entre eles, pai e mãe estavam presentes, mas era sempre o pai que se dirigia às crianças, dando explicações sobre o que estava exposto, acompanhando-as em cada passo. Depois havia os protestantes, os católicos, os hispânicos e os negros – havia centenas de crianças negras e não havia uma sequer acompanhada do seu pai. Só as mães. Minha mulher estava absolutamente certa, o que vimos é um retrato do que será a próxima geração nos Estados Unidos.

GM – O senhor considera que a civilização ocidental está num momento de declínio e desintegração, como conseqüência do desaparecimento do pai, da ausência crescente de pais nas famílias.

LZ – Não quero ser profeta e não quero anunciar catástrofes, mas acredito que este seja um fenômeno sem precedentes, e tenho certeza de que se trata de algo muito negativo e problemático. A ausência generalizada de pais é algo que não existiu nos últimos 3 mil anos de civilização. No passado, tivemos grandes guerras e catástrofes naturais, tivemos epidemia, mas depois de algum tempo as coisas retornavam às condições anteriores, pelo menos as famílias reconstruíam-se, a estrutura familiar ressurgia. O que vemos hoje não tem volta, a diferença é clara e as causas agora são endêmicas. Há outro paradoxo. Hoje acontece que mesmo os países pobres podem chegar a se desenvolver muito depressa em determinadas condições, como se viu no sudeste da Ásia, na Tailândia, ou no Vietnã. Se as pessoas forem sérias e fortes, pode se imaginar que em uma ou duas gerações terão saído da pobreza. Mas da catástrofe psicológica da ausência do pai não há saída.

GM – Qual é a imagem que o senhor vê à medida que esse declínio avança? Vê desordem social? Crime?

LZ – Crime, delinqüência juvenil e criminalidade vão crescer. Não creio que crescerão para sempre, nem que atingirão 100% da sociedade. Crescerão por um tempo e deverão se estabilizar num nível muito elevado. Acho que a criminalidade que tem origem sociopática deve crescer como decorrência direta do fenômeno que venho observando.

GM – O senhor vê esse fenômeno no mundo inteiro?

LZ – Em sua maior parte. Não acho que podemos simplificar excessivamente o fato porque ele está intimamente associado à pobreza, e se deve em parte à ausência do pai, e em parte não. Até agora, nos países árabes o pai ainda tem sido uma presença muito forte e me parece que uma das razões para a grande popularidade do fundamentalismo islâmico seja o fato de que oferece uma correção para certos problemas da modernidade – como a ausência do pai. A estrutura da família e a separação entre os papéis paterno e materno são tão tradicionais e tão fortes no mundo islâmico que oferecem uma proteção genuína contra todos os males da modernidade. Ao mesmo tempo, é também uma barreira ao acesso à modernidade, de maneira que esses países tendem a não se desenvolver muito, permanecendo pobres. Mas será que eles realmente estão perdendo tanto?

Fenômeno Familiar

GM – Mesmo dentro de famílias, muitas vezes os pais sentem que perderam o poder? Muitos pais se sentem constrangidos em agir como teriam agido seus pais ou avós?

LZ – Creio que se trata de um processo circular. De um lado está a ausência estatística, autoridade. Todas as condições paternas são afetadas por essa diminuição, de maneira que as coisas se tornam mais difíceis para o pai, mesmo nas famílias normais onde não existe risco de divórcio, onde há uma boa relação com as novas gerações. O pai contemporâneo é um pai cheio de dúvidas. “Será realmente o meu papel decidir?”, pergunta-se. Meus filhos, por exemplo, nem sequer têm 20 anos e já estão procurando profissões estranhas, que os levem para longe, ou pensam em se casar imediatamente, e me pergunto se devo ou não ser o pai tradicional e lhes dizer: ”Vocês sabem o risco que estão correndo? As chances de um divórcio se vocês se casarem agora serão tão altas que eu proibirei esse casamento”. Devo, vou, posso impor minha autoridade? Esta é a grande dúvida dos pais de hoje, porque depois os filhos vêm a nós e reclamam; as coisas não deram certo. Por que você não me preveniu? Por que você não me proibiu? Isso já aconteceu comigo e acontece o tempo todo com outros pais.

GM – O senhor vê alguma saída para os dilemas que os pais hoje enfrentam?

LZ – Infelizmente acredito que as coisas vão ficar como estão. Não podemos voltar no tempo e agir como nossos avôs. A perda de pais autoritários também implicou a perda da autoridade, em seu aspecto positivo, de maneira que também perdemos algo de bom. Não creio em conversões, nem em volta à visão fundamentalista da família onde o pai tem toda a autoridade.

GM – Como o senhor vê o papel das mães na nova configuração da família? Elas podem oferecer de alguma forma isso que está faltando por causa da ausência simbólica ou material do pai?

LZ – Frequentemente sim. Vejo muitas mulheres heróicas que são suficientemente fortes para substituir a ausência e vejo em muitos casos – embora não se possa generalizar – mulheres fortes individualmente. Mas vejo a possibilidade de que elas realmente venham a substituir o pai. Autoridade e respeito na família podem ser adquiridos pela mãe, mas também estamos falando de imagens coletivas, de símbolos coletivos de uma longa tradição histórica.

Tipicamente e arquetipicamente a atitude de força é esperada do pai e não de uma mãe que crie seus filhos sozinha.

GM – O senhor vê o desaparecimento da autoridade paterna como uma conseqüência da nova situação social da mulher?

LZ- Uma coisa é em parte causa e em parte conseqüência da outra. A figura do “mammo”, a boa mãe de sexo masculino, é um exemplo de uma intercambialidade de papéis muito democrática. Mas o problema aqui não é ganhar o pão, e sim exercer uma autoridade, estabelecer limites para a agressividade, socializar o adolescente, especialmente o de sexo masculino – este é o problema e o papel principal do pai: canalizar e limitar a agressividade dos jovens. Isso não tem nada a ver com o fato de que homens e mulheres podem se revezar em determinados papéis sociais.

GM – É aí que o senhor vê a real deficiência e o problema mais grave?

LZ – Sim, o que está fazendo falta é a autoridade paterna, que até pode vir a ser exercida pela mãe, mas que deve ser uma autoridade paternal, que estabelece limites.

GM – E que esfera o senhor vê o declínio na sociedade ocidental?

LZ – Um dos aspectos de declínio espiritual é o consumismo, a volta constante a matéria, à mãe, e não ao pai, ao espírito. O consumismo é uma coisa da fase oral, de total ausência de limites.

Posição Desconfortável

GM – Há gente que crê que o declínio do papel do pai vai abrir espaço para uma nova forma de organização social, que tende a ver o processo com otimismo...

LZ – Isto representa progresso em que direção? O que vimos de positivo até agora? Em alguns casos as sociedades sem pais produziram comunas, algumas deram certo, mas é apenas uma minoria reduzida, não um fenômeno generalizado. Não quero pregar o retorno ao fundamentalismo religioso e espiritual, nem o reacendimento de aspectos mais castradores da autoridade paterna. Mas o que me preocupa é que frequentemente as pessoas vêm para mim e dizem: ”Ah, isto é muito interessante, mas diga-me, então o seu argumento é uma espécie de ideologia ultradireitista, um retorno a Mussolini”. Não é, absolutamente, o que eu desejo dizer. Mas vejo o risco de isso acontecer quando as coisas são excessivamente simplificadas.

GM – O senhor vê um problema e não vê uma solução?

LZ – Acho que é suficientemente ousado um homem levantar–se e dizer: “Vejam, há este problema.” Quando se faz a análise de um problema não significa que se tenha a solução para o problema. Não estou querendo dizer que o que tínhamos no passado era melhor. Está claro que tínhamos de abolir os aspectos mais castradores da autoridade paterna, e isso é uma conquista. O problema é que perdemos também o elemento limitante e positivo da função.

GM – O senhor deixa seus leitores numa posição desconfortável...

LZ – Tomar consciência de um problema existente já é um grande passo, em minha opinião, e devo dizer que frequentemente me incomoda essa maneira americana de escrever livros, propondo sempre uma solução para todos os problemas. Para a maior parte dos problemas não há solução.

GM – O senhor vê ligação entre o florescimento das ditaduras durante o século XX e o declínio da imagem paterna?

LZ – Sim, acredito que há uma ligação muito clara, pois as ditaduras aproveitaram-se da falta de pais, da nostalgia pelos pais, como um instrumento de manipulação psicológica. Mussolini foi o primeiro a usar esse recurso, mas ao mesmo tempo foi uma figura absolutamente antipaternal. O fascismo, assim como a maior parte das ditaduras de direita, tende a estabelecer uma sociedade de iguais, uma espécie e camaradagem onde não há lugar para a figura protetora ou sábia do pai. Há predominância de um caráter agressivo no fascismo e nas ditaduras. Em resumo, a nostalgia do pai foi usada para conquistar o poder, mas não compensada com o exercício desse poder. Houve uma usurpação do poder paterno.

Gazeta Mercantil

Cultura Livro – Página 12

20 de junho de 2001

São Paulo – SP - Brasil

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