quarta-feira, 15 de agosto de 2012

'Samba' era obra mais 'poderosa' do modernismo​, diz curador

Fogo destrói parte de coleção de arte moderna no Rio

Obra-prima de Di Cavalcanti, "Samba" foi queimada no incêndio que atingiu cobertura do marchand Jean Boghici

Especialistas estimam perda em pelo menos R$ 60 milhões; causas do incidente ainda estão sendo apuradas;




'Samba', tela de Di Cavalcanti, queimada em incêndio anteontem em apartamento no Rio

DO RIO
DE SÃO PAULO

Uma das mais importantes coleções particulares de arte abrigadas no país, que incluía obras como o quadro "Samba" (1925), de Emiliano Di Cavalcanti, foi parcialmente destruída anteontem em um incêndio que atingiu a cobertura duplex do marchand e colecionador Jean Boghici, em Copacabana, no Rio.

"Queimou. Tudo bem. Muita coisa se salvou. Outras coisas se queimaram, o que eu posso fazer?", lamentou Boghici ontem, ao deixar o apartamento após vistoria. Ele tentara entrar no imóvel em chamas anteontem à noite, mas foi impedido pelos bombeiros. "Foi uma fatalidade."

"É uma tragédia gigantesca para a cultura brasileira. Era uma das melhores e mais representativas coleções da primeira metade do século 20", disse Washington Fajardo, secretário de Patrimônio do Rio e um dos primeiros a entrar no local após o fogo.

"Estava tudo muito escuro. Eu vi o 'Samba', do Di Cavalcanti, completamente destruído. Consegui ver um 'Bicho' [escultura], da Lygia Clark, no chão", disse Fajardo.

Especialistas ouvidos pela Folha estimaram as perdas em pelo menos R$ 60 milhões. Além da obra de Di Cavalcanti, com valor calculado em R$ 50 milhões, outras peças importantes queimadas foram um quadro de Vicente do Rêgo Monteiro dos anos 1920, um de Joaquín Torres-García, de 1931, e dois de Alberto da Veiga Guignard.

"Do Di Cavalcanti, sobraram só os pés das figuras. O Torres-García torrou inteiro, o Morandi também", disse um amigo de Boghici, que esteve no apartamento ontem.

O colecionador tem ainda obras de Tarsila do Amaral -"O Sono" (1928) e "Sol Poente" (1929)- que foram salvas, assim como uma escultura de Victor Brecheret e móbiles de Alexander Calder.

As causas do incêndio ainda estão sendo apuradas, mas a suspeita é de que o fogo tenha sido causado por um curto-circuito no ar-condicionado. (FABIO BRISOLLA, MARCO AURÉLIO CANÔNICO E SILAS MARTÍ)








'Samba' era obra mais 'poderosa' do modernismo, diz curador
SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO


Destruída anteontem no incêndio que consumiu o apartamento do marchand Jean Boghici no Rio, "Samba", tela de Emiliano Di Cavalcanti, pintada em 1925, é considerada a maior obra do artista e a melhor representação da cultura negra realizada no modernismo brasileiro.

Da obra, que mostra um grupo de figuras em festa, tendo duas mulheres no centro, uma delas negra, sobrou só os pés dos personagens, cerca de 30% da tela.

"Nesse quadro, Di Cavalcanti não está lidando com o folclore, e sim com uma das manifestações mais vivas da nossa cultura", diz o curador e crítico Paulo Herkenhoff.

"No modernismo não há peça tão poderosa quanto essa. É a maior manifestação da cultura negra, e também feita por um artista negro."

Tadeu Chiarelli, diretor to Museu de Arte Contemporânea da USP, equipara a importância de "Samba" à tela "A Negra", de Tarsila do Amaral, uma das obras mais emblemáticas da arte nacional.

"Essa tela tem uma monumentalidade", diz Chiarelli. "Tem o caráter do Brasil dentro do universo modernista."

Exposta logo na entrada do apartamento de Boghici em Copacabana, a obra com fortes figuras arredondadas travava um diálogo com telas de Vicente do Rego Monteiro da mesma década, também na coleção do marchand -uma delas se perdeu no incêndio.

"Era a síntese do Brasil", diz o marchand Max Perlingeiro, amigo de Boghici. "Essa sensualidade, a alegria, as cores, isso é Brasil puro."

Avaliada em mais de R$ 50 milhões, a peça é única na trajetória de Di Cavalcanti, que retratou universo semelhante só em "Cinco Moças de Guaratinguetá", importante obra do artista que hoje integra o acervo do Masp.

Fora de circulação e sem um exemplar comparável, a perda de "Samba" é considerada irreparável por críticos e analistas do mercado.

"Essa tela era um escândalo", diz Jones Bergamin, dono da casa de leilões Bolsa de Arte, que opera no Rio e em São Paulo. "Junto do 'Abaporu' e de poucos outros quadros, não tem nada com esse reconhecimento. Era uma das bandeiras da arte brasileira."

"Não há valor que pague uma coisa insubstituível dessas", diz Perlingeiro. "É uma coisa que a gente perde o fôlego, uma perda profunda."


Obras destruídas estariam em mostra de novo museu do Rio

Boghici emprestará outras peças ao Museu de Arte do Rio, que deve ser aberto em outubro

Marchand colecionou obras ao longo de 50 anos e impulsionou movimentos como o neoconcretismo no país
DO RIO
DE SÃO PAULO

Obras destruídas da coleção de Jean Boghici, entre elas "Samba", de Di Cavalcanti, e "Floresta", de Guignard, estariam numa mostra de inauguração do Museu de Arte do Rio, organizada por Leonel Kaz.

Marcada para setembro, a abertura do museu deve ser adiada para outubro.

"Quando se perde um patrimônio, apesar de pessoal, ele é nacional também", disse Kaz ontem à Folha.

"A exposição mostraria esse conjunto extraordinário que Jean reuniu em 50 anos. O que se perdeu de Antonio Dias será substituído por outro Antonio Dias, o Guignard perdido será substituído por outro Guignard. É isso o que vamos tentar fazer."

"Estamos em estado de choque, foi uma agonia terrível", disse ontem Hugo Barreto, secretário-geral da Fundação Roberto Marinho, responsável pelo novo museu na zona portuária do Rio.

Boghici, romeno que se mudou para o Brasil em 1949, sempre foi, além de marchand, um agitador cultural, responsável pelo resgate da memória da escultora surrealista Maria Martins e um dos maiores incentivadores da carreira de Antonio Dias.

"Ele sempre foi um grande promotor das artes brasileiras", disse Dias. Boghici também foi um disseminador do neoconcretismo e até namorou a artista Lygia Clark.

"Todos temos um débito com o Jean por ele ter criado uma coleção desse tipo", diz Washington Fajardo, secretário de Patrimônio do Rio. "A arquitetura e as coleções de arte são os melhores exemplos de bens privados que se tornam públicos."(MAC, FB E SM)

ANÁLISE

É possível reduzir riscos, e tudo deve ser feito nesse sentido

NÃO PARECE RAZOÁVEL QUE O ESTADO "TOMBE" OU SEQUESTRE OBRAS
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

COLUNISTA DA FOLHA

E as chamas levaram "Samba", obra realizada depois da fundamental viagem de Di Cavalcanti a Paris e três anos após a Semana de Arte Moderna -evento que nasceu, aliás, de uma ideia do pintor.

Esse exemplo vigoroso do esforço modernista de configurar uma expressão nacional na arte apareceu num tempo em que as peripécias mais radicais e incomunicáveis das vanguardas eram "corrigidas" por uma onda que se convencionou chamar de "retorno à ordem".

O movimento que revalorizava a figura vinha a calhar para os modernistas interessados em delinear uma temática "nossa". No caso de Di tratava-se de representar o homem, ou a mulher brasileira negra e miscigenada, no contexto da cultura popular.

Para alguns, uma obra-prima como "Samba" não poderia estar em outro lugar que não um museu ou uma instituição pública. Dessa forma estaria mais protegida e acessível ao público.

Embora nem sempre nossos museus mostrem regularmente as preciosidades que possuem, é presumível que, se estivesse num deles, a tela "Samba" poderia ser mais vista. Quanto a ficar mais protegida, já não parece tão certo.

A maior parte da obra do grande artista uruguaio Torres-García foi destruída pelo fogo no Museu de Arte Moderna do Rio. E incêndios em museus, mesmo em países ricos e que dão mais valor a seu patrimônio do que o Brasil, também acontecem.

Diante da tragédia, não é incomum o apelo desesperado a alguma instância salvadora que poderia evitá-la. Pode ser uma divindade qualquer ou o Estado. Não parece razoável, contudo, que o Estado simplesmente "tombe" ou sequestre obras de pessoas que as adquiriram, sob o argumento de que irá cuidar melhor do patrimônio.

Em tese, colecionadores privados são os maiores interessados em manter suas peças em boas condições. Se nem sempre o fazem, é de fato um problema.

Outras soluções podem ser imaginadas. Por exemplo: não seria impossível para um órgão público ou privado mapear obras cruciais como "Samba", entrar em contato com os donos e compartilhar projetos de segurança. É sempre possível reduzir riscos, e tudo deve ser feito nesse sentido. Nada, porém, impedirá que fatalidades continuem a acontecer.

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