sábado, 10 de abril de 2010

PEQUENA MORTE - Apresentação da Ferida

É um texto de Mayara Ribeiro Guimarães, super recente, de março de 2009. Faz parte da tese de doutorado dela na UFRJ em Literatura Brasileira. Bárbaro como alguém consegue "captar" tão bem Clarice Lispector e "viajar" junto a ponto de explicar entranhas estruturais do pensamento de Clarice. Eu nessas sou feito criança que vai lendo e os olhos vão se arregalando em êxtase pelas coisas que está lendo, tão fortes, tão verdadeiras, mas cuja magia ali imersa não é decifrada e nem precisa. A fruição per se já me ocupa um belo tempo. Mas então estudiosos com certeza apaixonados como Mayara nos trazem uma versão também interessantíssima sobre fortes aspectos da obra da Clarice, e também é ótimo acompanhar. Aliás, quando a gente se apaixona por um tema, um fenômeno, uma pessoa especial, etc., qualquer enfoque sobre si ou sua obra torna-se automaticamente mais elemento a somar nossa paixão. Assim é que ocorre comigo quando se toca no assunto Clarice Lispector. E este texto é novíssimo! Parece que assim Mayara traz (do mesmo jeito que Clarice fazia), mais magia latente e pulsante em "palavra por palavra". O "desnarrar". Já imaginaram o que possa ser isso? A própria palavra já traz em si toda a força de um rebento nascendo. Uma sensação que faz de uma simples palavra um quase próprio "ser vivo". E não é?! Esta é a minha ótica-crítica-apaixonada sobre o texto. Agora aí vai o original a que me refiro:

Paixão, via-crúcis, noite, corpo. Signos com os quais me deparo no primeiro instante em que tomo à mão um texto de Clarice Lispector. O que dizem estes signos? A primeira coisa que afirmam é que não são apenas signos, são símbolos que se reatualizam enquanto realidade viva e presente, na ficção e na vida. Comecemos pela paixão. Sabe-se que a paixão de Cristo era obsessão pessoal de Clarice Lispector, não apenas como topos literário, mas como uma via-crúcis entendida como condição irrevogavelmente humana, noite abissal, que assola o corpo e convoca uma ferida irreparável. Na relação entre sujeito e mundo, o indivíduo sucumbe e morre. Diariamente.
Da herança de uma civilização que introjeta o dualismo psicofísico e o sacrifício individual, gerando violência e conflito entre homem, natureza e sociedade, entroniza-se a cultura dos esquemas dicotômicos de representação, estrangula-se o centro pulsante da vida, canoniza-se o discurso nobre e eloqüente, criam-se os mitos de profundidade e transcendência e as figuras históricas de dominação. Da separação nasce a necessidade de se construírem verdades – porque o homem não sabe viver sem a verdade – porque o homem não sabe lidar com a fragmentação nata de que fala Schlegel e entende que deve resolver essa cisão.
E o indivíduo, corda sobre o abismo, vive a expiar suas dívidas. Vive para resolver um corte. Fechar uma ferida. Suturar a barriga aberta. Mas, e se a sutura não resolve a culpa? Se nem mesmo é possível suturar? E se a sutura for ainda mais uma tentativa de expiação? Cicatrizes – índices – sintomas. O gesto se torna uma mecânica, um hábito, uma tradição herdada de um império mais extenso chamado religião, sociedade, cultura. E se chegamos a um ponto em que se compreende que não é possível mais suturar, a próxima constatação não é “o que fazer com a barriga aberta?”, mas “o que ela se torna?”
Deparo-me com um problema: poderia dizer que a literatura não pretende resolvê-lo, mantendo a inesgotabilidade do enigma, mas se assim o fizesse permaneceria com a ininterrupta constatação de que o indivíduo está perdido, a identidade estilhaçada e a subjetividade encurralada. Mas o fato é que alguma coisa é dita – construção em meio à pulverização. Há uma condução, uma via, uma palavra escrita, um gesto feito. O que me acena este gesto, para onde me aponta essa via, o que exorta essa palavra? Não sei. Sou lançada ao centro do desamparo. E agora preciso de um fio que me conduza, qual Minotauro agonizante. Ao meu redor a tradição, a mitologia, a hermenêutica, a filosofia, o tempo, com suas bocas enormes e cheias de dentes, qual Caribde a buscar uma presa, um sacrificiado, uma oferenda. Tenho apenas este fio, pequeno sustentáculo que prende o fruto ao galho, metonímia do caule e da copa, das raízes e da árvore, da terra e do céu.
De pé, encaro a ferida. Diante e logo já dentro dela, sem outras opções, digo sim a este convite que me é feito. Preciso de uma configuração. Esta: meu guia será a imagem. Meu objeto, a barriga aberta. Aquele que vê sou eu, a barriga também, e a mão que corta. Mas não. Tentemos outra configuração. Aquele que vê é o escritor, o olhar é a escrita, a barriga aberta é a tradição, o que corta é Clarice, a tripa é a Literatura. Olhar, barriga, corte, tripa. Corpo, morte. Meu fio: o corpo da morte – a morte do corpo. Corpo: escrita. Morte: voz.
Paixão.
Não falo de meu túmulo, mas falo diante de um túmulo. Já não posso tocar o corpo, mas este recuo só me concede a medida de sua presença, de sua morte. Porque morrer é ininterrupto. Como enfrentar o invisível de frente? Olhar a ferida até o cegar dos olhos por sua incandescência, que é também minha, dos santos, dos adoradores?
Mais uma vez a paixão, amor pelo duplo, mergulho no avesso desta tradição, encenando não a ascese do homem, mas o processo de humanização de si mesmo em sua própria condição imanente. A matéria só se amplia ao infinito, o eu só abraça o mundo, se aceitar que a queda é parte do equilíbrio, e deixar-se abandonar a um campo de força que implica a afirmação de suas diferenças, de uma subjetividade que se desfaz no contato com o outro e se refaz nessa mesma dinâmica.
A obra de Clarice é o drama de uma subjetividade contorcida sobre a ferida aberta pela separação. A interferência dessa ferida na relação sujeito-mundo só poderá encontrar uma via pela entrega à escrita, já que a existência é trespassada pela linguagem.
Mas antes, Dioniso. O sintoma apresenta sua máscara, artifício, fingimento, que se reatualiza na própria escrita. O problema da identidade leva à exposição da máscara e à dialética entre aparência e essência. O sujeito desenvolve uma dinâmica de revelação e ocultação da essência por meio da encenação. Assim é que a escrita se torna um artifício que reencena as máscaras do homem na tentativa de lidar com a ferida, que é do artista, do personagem, do leitor, da escrita. A escrita sem estilo de Clarice Lispector desnarra a si própria a partir do seu despojamento, de seu esfumaçamento, porque o estilo se torna a forma idealizada por uma tradição estética. Além de criar histórias que se entrelaçam a outras histórias formando inesgotáveis palimpsestos, a obra de Lispector não deixa de fazer o caminho inverso, apagando tantas outras histórias, uma após a outra, até que não se cante mais a criação e seu maravilhoso, mas o aparecer e desaparecer, para que a dinâmica do gesto cresça com sua potência de corpo presente e ausente, túmulo e berço.
Depois de desnarrar Deus, a vertente judaico-cristã do dualismo psicofísico e a herança de uma tradição que transforma Eros em agente ético e moral, Clarice desnarra a letra, que é a própria literatura. Verifica-se assim que a ferida metafísica provoca fraturas não apenas ontológicas, mas fundamentalmente culturais e inevitavelmente estéticas.
Assim, Madalenas, Sofias, G.Hs, Lóris, Clarices e leitores iniciam-se como neófitos no universo do duplo domínio porque mergulham e permanecem naquela zona em que o descortínio do real é também o seu afastamento. E o gesto torna-se mais importante do que a imagem, ponto de abandono: abandonar-se a uma presença, ou a uma visão, que nada mais é do que seu próprio retirar-se, seu apagamento. Onde os olhos se abrem, sem medo da cegueira. De chofre se explica para que se nasce com olhos e garras, sem nojo da visão. É que outros olhos fazem outras histórias.
Abandonar a estrutura humanizante para reencontrar-se novamente humano não é tarefa agradável e requer ir ao encontro do subterrâneo de si, das maldades e sadismos, angústias e assassinatos diários. Dos nossos mortos. A vida oprime porque é um soco no estômago e o desamparo é de todos.
O sujeito, no centro deste desamparo, aponta para a insuficiência de uma subjetividade (e da linguagem por ela expressa) refém de uma falsa garantia de organização amalgamada pelo saber absoluto. A linguagem vive e manifesta a inadequação ao sistema definido por códigos que já não dão mais conta da condição a que chegou o sujeito. A culpa, que se traveste como a intransponível ferida, não é nem mesmo resolvida com a liberdade buscada pelo sujeito, apenas talvez com a dinâmica desempenhada por uma consciência que se abre no horizonte da ruína e da morte, do erotismo e do desejo, na constituição da realidade. A culpa é apenas mais um mecanismo introjetado pela cultura que se interpõe diante da relação homem-mundo e impede a sua realização enquanto ser. No entanto, a literatura pode transformar esta ferida em imagem e potência criadora, tornando-a fronteira entre o ser, o não-ser e a poesia, via de acesso do eu descarnado a uma forma em permanente movimento de recomposição do dualismo antagônico em dualidade complementar. A única possibilidade de atingir a fusão entre eu e mundo ou entre o limitado e o infinito, como se configura a equação clariciana, é pela abertura à alteridade, pelo abandono dos suportes introjetados pela cultura, e pela entrega à desfiguração da ferida.
Mayara Ribeiro Guimarães é Mestre e Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ, instituição em que atuou como professora substituta. O ensaio incluído nesta revista foi lido como texto de apresentação na defesa de doutoramento de tese, intitulada “Clarice Lispector e a deriva dos continentes: da descoberta do mundo à encenação da escrita”, em março de 2009.
http://pequenamorte.com/2009/03/apresentacao-da-ferida-mayara-ribeiro-guimaraes/

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