A música que Noel Rosa fez em Porto Alegre
“O samba, na realidade, não vem do morro. Nem lá da cidade.
E quem suportar uma paixão, sentirá que o samba então... Nasce no coração.”
Noel Rosa
Há mais de duas semanas a imprensa de Porto Alegre vem anunciando a chegada dos Ases do Samba. O Cine-Teatro Imperial faz publicar nos jornais anúncios onde se lê: “Eles custam... mas vêm.” Cria-se uma expectativa. A estréia, segundo o mesmo anúncio (que aliás chama Mário Reis de “doutor”, promete a presença de Lamartine Babo e refere-se a Noel como “Noél Rosas”, com acento agudo no primeiro nome e um esse a mais no segundo), está marcada para sexta-feira, 29 de abril. Será o começo de uma temporada inesquecível, plena de música, emoção e sobressalto.
Chegam a Porto Alegre poucas horas antes do espetáculo. E já que cada qual tem de pagar hospedagem do próprio bolso, separam-se assim que pisam em terra. Mário Reis e Francisco Alves, de carteira mais providas, vão para o conforto do Grande Hotel. Pery Cunha, Nonô e Noel, para quartinhos apertados de uma pensão barata da Rua Clara (atual João Manuel), perto da Riachuelo. Pode não ser o Grande Hotel, mas tem lá os seus favores. De pontos em pontos, numa e noutra calçada, venezianas entreabertas apenas insinuam vultos de mulher que lá de dentro chamam os transeuntes para um “instante”. Ou seja, um amor ligeiro e econômico. São as chamadas casas alegres de uma rua onde se encontram também dois ou três botequins vagabundos, freqüentados por uma população pobre, noturna e meio vadia.
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Os Ases do Samba ficam uma semana no Imperial. Nos dias 6, 7 e 8 de maio atuam no Carlos Gomes e, em seguida, estendem a excursão a outras cidades do Estado, Caxias do Sul, São Leopoldo, Cachoeira do Sul, Rio Grande, Pelotas.
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Voltam a Porto Alegre para uma nova série de apresentações nos últimos dias de maio. A essa altura já é quase impossível encontrar Noel fora do palco. Ele e Nonô continuam entregues às suas expedições boêmias à Rua da Praia, aos cabarés mais ordinários, aos botequins mais escondidos. Isso enquanto Mário e Chico vão engravatados ao Clube Jocotó divertir-se com a alta classe média porto-alegrense, ou ao Caçadores, na Rua Nova (atual Andrade Neves), em velhos tempos o preferido de Getúlio Vargas. Mas os desaparecimentos de Noel são ainda mais demorados que os de Nonô. Na verdade, ele é o mais “ocupado” de todo o grupo. Bem em frente à pensão da Rua Clara – na qual volta a hospedar-se – mora uma bonita morena que ele conheceu uma noite dessas, talvez de janela, talvez de prosa de esquina. Noel, como de hábito, se apaixona. Uma paixão breve, mas intensa, que o agasalha nestes frios dias de outono. Já não adianta Francisco Alves correr atrás dele, reunir os outros Ases do Samba para uma busca pela cidade. Não vai encontrá-lo. Nonô e Pery sabem, mas não dizem, que em vez dos ensaios à tarde o amigo prefere os carinhos do novo amor. Com se chama?
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Uma paixão breve, mas intensa. O suficiente, pelo menos, para encher de tristeza o coração de Noel Rosa no dia do embarque para Florianópolis. Como o próprio Noel contará daqui a alguns anos numa entrevista (Carioca, 18 de julho de 1936 – página 41), na véspera de tomar o navio conversa com a morena, ele da sua pensão, ela na janela da casa em frente. Chove muito. Noel gostaria que estivessem juntos em vez de separados pelo aguaceiro que desaba sobre a rua estreita. Alguém a chama lá de dentro. A morena entra apressada, com tempo apenas para dizer:
- Até amanhã...
Não haverá amanhã. Noel viaja sem voltar a vê-la. No navio que o leva de Porto Alegre a Florianópolis, completa o samba que começou a escrever no seu quarto de pensão:
Até amanhã, se Deus quiser,
Se não chover eu volto pra ter ver,
Oh, mulher!
De ti gosto mais que outra qualquer,
Não vou por gosto,
O destino é quem quer.
Adeus é pra quem deixa a vida.
É sempre na certa em que eu jogo
Três palavras vou gritar por despedida:
“Até amanhã! Até já! Até logo!”
O mundo é um samba em que eu danço,
Sem nunca sair do meu trilho.
Vou cantando o teu nome sem descanso,
Pois do meu samba tu és o estribilho.
E mais uma quadrinha que esperará seis décadas para ser conhecida pelo público:
(Gravada em 1983 como uma das vinhetas do disco Noel Rosa Inédito e Desconhecido)
Eu sei me livrar do perigo,
No golpe de azar eu não jogo.
É por isso que risonho eu te digo:
“Até amanhã! Até já! Até logo!”
(Pesquisa do livro “Noel Rosa – uma biografia”, de João Máximo e Carlos Didier)
Editora UnB
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