A 7ª Bienal do Mercosul, que ocorreu em Porto Alegre de 16 de outubro a 29 de novembro, nos coloca face a face com questões que assombram mostras de grande porte como esta em todo o mundo. Ao mesmo tempo, também nos proporciona encantamentos.O formato já demasiadamente explorado destas mostras ainda se orienta segundo um perfil de feiras ou salões de arte que, salvo raras exceções, pouco consideram o espaço em que se inserem como elemento que ativa ou se transforma através de uma proposição em arte. Na maioria das vezes, os espaços expositivos explorados por estas mostras se configuram como depositários de obras, nem sempre tensionando a relação do trabalho com o local que ele ocupa. Problemas que não assolam somente esta Bienal, mas todas as outras exposições que buscam se beneficiar deste formato. Este problema não é recente, e talvez por esta não-disponibilidade em pensar o local em relação às obras ali instaladas podemos presenciar espécies de contaminações, que muitas vezes não favorecem os trabalhos que compartilham um determinado espaço expositivo. Muitas das obras, sobretudo as audiovisuais, expostas nos armazéns do Cais do Porto, parecem sofrer desta contaminação. Em diversos momentos, ela impede o público de experimentá-las sem ter como fundo um atravessamento de sons e luzes. É claro que o espaço neutro, isolado e asséptico não interessa a proposições que já ultrapassaram o formato do cubo branco. Porém, ainda assim se faz necessário buscar soluções a este impasse, já questionado tantas vezes no decorrer do século passado até os dias de hoje, visto que esta configuração de exposição se mantém. Algumas das soluções encontradas se aproximam do uso de um artifício cenográfico como invólucro ou receptáculo dos trabalhos. Este artifício raramente se mostra eficaz na solução desta questão. Podemos perceber uma tentativa de criar um lugar particular para as obras serem instaladas no Armazém A3 do Cais do Porto. Ali, elas acabam por se embaralhar com um cenário que em nada facilita a aproximação aos trabalhos que compõem a seção, denominada Absurdo. Algumas questões se impõem para pensar este desenho de exposição: o que fala mais aqui, a obra dos artistas ou o background, que se sobrepõe e parece a tudo engolir ou homogeneizar? Como pensar, ao mesmo tempo, a produção de um trabalho e o local em que ele é tornado público?Uma alternativa ou estratégia de obrar arte como uma forma também de obrar a cidade me parece bem explorada na intervenção de Henrique Oliveira. Como um respiro, ou algo que nos faz andar, pensar e sentir com os olhos, o corpo, a mente, a intervenção Tapume, em uma casa que se localiza na Rua da Praia, transborda pelas janelas, portas e aberturas do imóvel. São lâminas de compensado flexível, canos de PVC e compensado reciclado que, moldados como formas orgânicas, extravasam os limites da arquitetura, derramando- se sobre a rua e sobre os transeuntes, que não saem dali incólumes. Esta é uma das experiências desta Bienal que busca pensar o local em que se insere, jogando com o espaço urbano como co-elemento da criação e fomentando uma relação entre público e obra que alarga o lugar da arte para além dos limites dos espaços tradicionalmente consagrados para vivenciá-la. Assinalando esta abertura e aproximação entre arte, mundo e vida.Seguindo este mesmo caminho, outro mérito da Bienal reside no programa educativo, que propôs projetos de residência espalhados no interior do Rio Grande do Sul. Cada artista convidado indicaria o local com o qual poderia trabalhar juntamente com esta comunidade, procurando estabelecer ali um vínculo e convidando este outro a pensar sobre o seu próprio entendimento daquilo que é ou pode vir a ser arte – ou mesmo sobre sua relevância.Seria possível pensar os espaços do Cais do Porto, tão carregados de significados, histórias, marcas e trânsitos, da mesma forma como estas experiências, acima citadas, pensaram o espaço público? De que maneira este atravessamento poderia acontecer de fato, fundando um diálogo entre o espaço expositivo, as obras e o público? Ou ainda: como lidar com problemas de apresentação como a acústica e visibilidade de determinados vídeos?A 7ª Bienal vem sendo apontada em diversos veículos de informação como uma Bienal de altos e baixos, sendo comparada a edições anteriores, é foco das mais diversas críticas. Com encontros e desencontros na organização de performances - como a de Paulo Bruscky, ou com fatalidades nunca vivenciadas antes. Mas apesar dos lapsos desta mostra, os trabalhos que se destacam na exposição são, por outro lado, de rica elaboração investigativa e poética. Propostas como a de Jérôme Bel colocam em questão o lugar de um sujeito ordinário, que pode tratar-se de um coadjuvante em um universo orientado pela lógica do espetacular.Nos armazéns do Porto, dentro da proposta curatorial Ficções do Invisível, encontramos Veronique Doisneau. Neste filme, dirigido por Bel e Pierre Dupouey, podemos assistir a uma bailarina, em final de carreira, nos colocar frente aos sabores e dissabores de seu universo de trabalho. Ela nunca ocupou o lugar de primeira bailarina – ao contrário, se reconhece como mais uma entre tantas. Consciente, entretanto, de seu lugar, desnuda-se frente à platéia que ocupa a Ópera Nacional de Paris. Com um fundo de melancolia, mas ao mesmo tempo com dignidade, ela nos relata suas experiências, aquilo que a marcou positiva ou negativamente, seus sonhos, suas perdas. Aponta-nos este lugar que se faz mais pungente, o ordinário. Ao mesmo tempo potente por nos colocar frente aquilo que há de mais humano, o comum. Um comentário sobre o que não se pauta pela primazia, pela lógica de um sistema que nos condiciona e aprisiona nesta ênfase na superioridade, na excelência, configurando uma sociedade marcada pela competitividade.Destacam-se, ainda, os filmes em stop-motion Lucia e Luis, projetados em uma sala acima do cenário de areia proposto para a seção Absurdo. Lucia e Luis são personagens criados pelos artistas Niles Atallah, Cristóbal León e Joaquin Cociña. Estas figuras surgem como espectros a sussurrar histórias em seus quartos, que se transformam segundo as oscilações, tensões e angustias contidas nestas narrativas delirantes. Deslocando-nos para o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, podemos assistir a uma proposta curatorial lúcida e sutil, definida pela delicadeza e pela precisão. Combinando obras de caráter histórico com proposições contemporâneas, a seção Desenho das Idéias, como o próprio nome sugere, pensa o desenho como meio, ao mesmo tempo, de ação e de reflexão sobre o que engendra um trabalho em arte.Marcados por uma beleza singela, os desenhos de José Antonio Suarez, por exemplo, instalados no segundo andar do MARGS, buscam captar o nosso olhar através de um princípio de aproximação. Atentando para o ínfimo que transborda em uma profusão de imagens sutis, o artista nos apresenta a sua obsessão em elaborar um universo gráfico pautado pelo detalhe. Uma tentativa de buscar no espectador um interlocutor atento e desperto para aquilo que se revela como um rebatimento do cotidiano e do prosaico no mundo. Desenhos que ressaltam a importância do corriqueiro em um mergulho no imaginário do artista.É necessário, ainda, refletir sobre o que uma mostra como a Bienal do Mercosul aporta para a cidade. O que ela produz e transforma? O que fica destas ações e intervenções? O que reverbera sobre o público e se propaga para além do evento? Que tipo de conhecimento produz? Há algum tempo em Porto Alegre mostras como esta - e as suas ações educativas continuadas -, conjuntamente a iniciativas independentes e instituições de ensino, vêm contribuindo para um alargamento maior do entendimento do que pode se configurar como um espaço de produção e discussão de arte.Aberta a um público diverso que, em sua maioria, só se aproxima deste gênero de experiências em arte nestes momentos, talvez esta Bienal encontre como metáfora o vídeo de Janine Antoni. Em Touch, ela nos apresenta a imagem da instabilidade e da busca por equilíbrio, jogando com a idéia de limite e, ao mesmo tempo, de sua transcendência. Ela se desloca pela corda bamba, sobre um horizonte longínquo, arrisca, busca a estabilidade. Da mesma maneira nos encontramos frente a esta Bienal: percorrendo uma linha tênue entre o sublime e o passageiro, aquilo que impregna ou se extravia. Resta apenas um convite: lançar-se nesta aventura e elaborar, a partir de nossas próprias vivências, valores e bagagens, uma leitura particular e crítica.Glaucis de MoraisArtista e professora do Centro Universitário Feevale, em Novo Hamburgo (RS).
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário